segunda-feira, 19 de outubro de 2009

das palavras

Justamente no dia mais pleno de vazio, Luísa estava cheia, quase transbordante, de emoções. Queria palavras loucas, diabólicas e divinas para inventar uma outra realidade. Estava disposta a pôr em prática seu poder de mágica que não aprendera em aulas de magia mas na experiência da dor. Dor que Luísa mandava às favas no exercício de caçar palavras.

- Mas eu não caço, eu cato palavras - disse Luísa - porque elas estão todas aí pra todo mundo ver, saltando das bocas das pessoas: palavras delicadas ou severas, doces ou amargas, submissas ou indignadas, gritando dores ou sussurrando libertinagens...

E assim Luísa saiu à cata de palavras com o firme propósito de criar uma nova realidade, preenchendo vazios, fazendo mágica... Encontrou as palavras loucas, diabólicas e divinas que tanto queria e dentre elas escolheu justamente a mais fluvial, a mais transbordante, rebento de nuvens e de chuva: a palavra Amor.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

da memória

Dona Maria tem 77 anos e já não consegue reter quase nada na memória: faz a mesma pergunta diversas vezes; não toma banho porque pensa que já tomou ou toma vários porque esquece que já tomou; adora sorvete mas não lembra que saboreou um há minutos atrás. Raquel, sua filha, a leva para passear de vez em quando mas ao voltar Dona Maria já nem se lembra que saíra de casa. Raquel se questiona sobre o sentido de levá-la para passear :

- De que vale uma manhã de lazer se ela não consegue lembrar depois? A vida tem sentido sem lembranças?

Naquela manhã de primavera Raquel levara sua mãe ao parque, pensou nela apreciando o viço das plantas e o colorido das flores. Aquela manhã Dona Maria já esquecera mas à tardinha cantava uma canção enquanto regava suas plantas na varanda. Raquel a observou comovida e sorriu: pensou que de alguma forma Dona Maria registrara o passeio, se não na memória, em seu corpo, na memória dos sentidos.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

meu artífice (em sonho)


em sua boca meus seios foram moldados
em sua língua meu sexo foi esculpido
minha carne foi tingida da cor do seu amor
minha epiderme assumiu a textura da sua dor
sou obra sua
você me recriou


junho/2008